"Onde 'isso' estava, Eu devo advir" - Sigmund Freud

31 de janeiro de 2013

Um sonho analisado por mim - exemplo do sentido dos sonhos


                                 "El sueño de la razon produce monstruos" Goya, 1799


       Tive esse sonho alguns meses atrás, quando frequentava costumeiramente uma clínica por ocasião de um problema que tive. Me surpreendi com sua interpretação, pois neste caso obtive uma prova quase que inequívoca da sua validade. O leitor poderá achá-lo muito interessante se não conhece as descobertas de Sigmund Freud sobre a função e mecanismos dos sonhos:

"...eu estava num posto de gasolina e o frentista - um rapaz negro - havia acabado de colocar a gasolina no tanque do carro. Fiz o pagamento - não lembro o valor -  e fiquei aguardando o troco. Comecei a ficar irritado, pois achava que o frentista estava me enrolando para poder ficar com o troco. Achei que ele poderia pensar que como eu tinha mais dinheiro do que precisava para pagar a gasolina, então ele estaria no direito de ficar com o resto para ele. Depois de exigir meu troco imperativamente ele desistiu de sua intenção (pois percebeu que eu não ia deixar o assunto de lado), e passou a me dar o troco. Mas o fez por meio de notas de cinco. Ele me dava cinco reais e aguardava para ver se eu ficava satisfeito e ia embora, e assim ele poderia ficar com o resto do troco. Então me dava cinco, eu ficava olhando para a cara dele esperando, e então me dava mais cinco... Sabia que tinha feito o pagamento em notas altas, de vinte, então exigia que ele me desse o troco da mesma forma, que não ficasse me enrolando...a coisa chegou a tal ponto que perdi a paciência e parti para cima do frentista para agredí-lo com muita raiva...No final do sonho o rapaz já havia sido misteriosamente substituído por uma mulher, também negra".  A impressão que tive no momento que acordei foi de espanto pela minha agressividade, e o primeiro pensamento que tive foi 'cara, você estava como muita raiva daquele frentista mesmo'.

       Toda a interpretação do sonho só foi possível graças a uma lembrança que chegou até a mim sobre o dia anterior. Primeiramente, de forma indistinta, sabia que era algo que dizia respeito a esse sonho num livro que estivera lendo na noite anterior, pouco antes de dormir - mas não sabia o quê. Então fui na gaveta, peguei o livro (A linha de sombra - Joseph Conrad), e comecei a folheá-lo retrospectivamente. Voltando umas cinco páginas do ponto onde havia parado, encontrei a seguinte afirmação, logo perto do final da página: "A humanidade que inventou o provérbio 'tempo é dinheiro' há de compreender minha irritação". A partir de então pude me certificar de que a interpretação do sonho estava correta. 

       Não lembro ao certo o caminho que percorri até chegar a presente interpretação do sonho, mas de qualquer forma tal foi o resultado:

       Como mencionei antes, estava frequentando assiduamente uma clínica por ocasião de uma lesão que havia sofrido. Uma vez cheguei na clínica e fui direto ao balcão falar com a recepcionista - ou balconista, tanto faz. Recepcionistas e balconistas ficam geralmente na "frente" de determinados estabelecimentos - ou seja,  são "frentistas". Mas ela simplesmente levantou a mão e me mandou aguardar - era uma garota jovem, branca, cabelos loiros e um pouco gordinha (jamais esquecerei seu rosto). Eu, educamente, o fiz, pois achei que ela deveria estar muito atarefada. Passados por volta de cinco minutos voltei a me dirigir a ela, mas recebi a resposta incisiva "aguarde que te chamo". Achei que ela logo iria me chamar. Não foi o caso... Passados algo em torno de vinte minutos voltei a me dirigir ao balcão e perguntei a outra moça porque ainda não havia sido chamado pela recepcionista, ao passo que ela respondeu: "como ela vai te chamar se você não entregou sua carterinha? Acha que ela é vidente é?" Cara, eu fiquei muito puto com isso... Mas claro, como sempre, permaneci contido. A contenção da minha raiva levou-a a se manifestar no sonho, como uma válvula de escape, semanas após o ocorrido. A grande lei exposta por Freud no livro "A Interpretação dos sonhos" de 1900, é que todo sonho é a realização de um desejo suprimido. O presente caso em nada difere disso. No dia da clínica eu sabia que deveria entregar a carteirinha para ser liberada a consulta, justamente por isso estava aguardando a minha solicitação por parte da recepcionista, para entregar-lhe a carteirinha do convênio.

     Segundo Freud os sonhos seriam pensamentos expressados por imagens, e os pensamentos que estavam sendo representados no meu sonho eram estes: "Dei toda a minha paciência e compreensão à moça da recepção - ou seja, dei a ela 'notas altas de vinte'. Mas ela insistia em retribuir minha educação com ignorância e menosprezo, mandando toda vez eu aguardar um pouco ('cinco minutinhos'), devolvendo apenas 'notas de cinco'. A intenção dela era não ser incomodada com mais trabalho, ter mais tempo para si, ou seja, 'ficar com o troco'".

       Como mencionei anteriormente, a chave para a interpretação desse sonho foi o ditado "tempo é dinheiro". O fato de tê-lo encontrado no livro que eu estivera lendo na noite anterior ao sonho forneceu uma prova quase que inconteste. Os sonhos se expressam por meio de uma linguagem simbólica, e o meu sonho simplesmente representou o significante 'tempo' por 'dinheiro', em conformidade com o ditado. Esse mecanismo da distorção onírica teve sua função explicitada por Freud.  Como o material reprimido gera desprazer - e justamente por esse motivo que ele foi reprimido - é necessário que se façam algumas alterações nesse material  para que ele novamente tenha acesso à consciência. O sonho manifesto - que seria o sonho tal como o vemos -  seria o resultado do processo de elaboração secundária dos pensamentos oníricos latentes que foram suprimidos da consciência de vigília.

       O que estava em questão nesse sonho era um complexo de "aproveitamento da minha boa vontade". Vale ressaltar que embora o leitor possa ter tido a impressão de que a interpretação deste sonho tenha sido bastante óbvia, devo adverti-lo de que minha impressão ao acordar dele foi a de confusão completa. Até então não fazia a menor idéia do porquê de ter sonhado com um frentista que não queria devolver o meu dinheiro. Foi a técnica psicanalítica da livre associação de idéias que me permitiu obter uma compreensão do sonho.

Observações:

       Sei que  eu poderia ir além na interpretação desse sonho e trazer mais conteúdo sobre ele, mas se tornaria enfadonho ao leitor e me colocaria numa posição de risco, ao ter que revelar sobre mim mais coisas íntimas do que estou inclinado a fazê-lo. Por exemplo, o fato do frentista ser um rapaz negro, e depois se transformar numa mulher negra ao final do sonho pode ter permanecido obscuro ao leitor. Fenômenos como estes - condensação e representação pelo oposto (afinal de contas, a recepcionista era branca) - se encontram suficientemente explicitados no livro de Freud sobre os sonhos "A interpretação dos sonhos" de 1900. Foi o primeiro livro que li sobre psicanálise, e sua leitura mudou minha forma de ver o mundo. Até hoje permanece sendo a minha melhor indicação para quem quiser se empenhar em compreender os mistérios mais profundos da mente humana.

21 de janeiro de 2013

O INCONSCIENTE E OS ATOS FALHOS - O que as pessoas revelam sobre si mesmas quando cometem erros

A suposição de atividade mental inconsciente é o que possibilitou a Freud elaborar toda a teoria psicanalítica. Vários fenômenos o levaram a sustentar a existência do inconsciente. Um deles em particular é bem divertido, pois facilmente observado em nossa vida cotidiana: os atos falhos. A partir do momento que passamos a compreender o real sentido dos atos falhos, podemos ver o modo como o inconsciente de um indivíduo o trai e revela suas reais intenções.

Os atos falhos consistem em pequenos lapsos - esquecimentos de nomes, de horários, datas, coisas a fazer, ou algo dito que não era o que tinha sido intencionado a dizer, erros ao fazer alguma coisa, em suma, todo processo em que ocorre alguma interferência no que foi planejado, na atitude "normal" esperada, por isso o nome ato falho.

Até antes de Freud - na verdade até hoje, para aqueles que desconhecem a psicanálise e querem ocultar o real sentido dos pequenos erros - os atos falhos eram tidos apenas como simples equívocos, algo feito "sem querer", que não tinha maior importância, que não possuíam nenhuma causa e eram atribuídos simplesmente a um "descuido". Freud, por sua vez, pôde mostrar no livro "Sobre a psicopatologia da vida cotidiana" que até os erros mais simples teriam um sentido oculto que teria sido evidenciado de tal forma - no erro.

Num exemplo do livro, um senhor estava conversando com uma jovem sobre como a cidade [Berlim] estava bonita com os preparativos para a Páscoa, e disse: "viu a loja Wertheim? Está toda decotada, oh, quis dizer decorada!". Esse é um exemplo bastante simples, mas é interessante pois comumente as pessoas têm a tendência a atribuir um erro como esse simplesmente ao acaso, e não procuram investigar o que o ocasionou. O locutor diria "oh, quis dizer decorada!" e a coisa ficaria por aí mesmo. A outra pessoa da conversa geralmente tende a não dar atenção ao ato falho. Já Freud interpreta esse pequeno erro como uma interferência de um pensamento inconsciente do senhor a respeito do decote da roupa da jovem senhora. Em todos os casos analisados, Freud consegue mostrar que os atos falhos, dos mais simples aos mais complexos, são fruto de um processo inconsciente suprimido e que sua causa pode ser descoberta.

Outro exemplo do livro: um professor de medicina, conhecido por sua arrogância, dá uma aula sobre cavidades nasais. Depois de perguntar se todos os alunos entenderam recebe um 'sim' geral. Diz então que esse assunto é muito difícil e que duvidava da compreensão deles. Afirma que 'mesmo em Viena, com seus milhões de habitantes, os que entendem das cavidades nasais podem ser contados num dedo, quero dizer, nos dedos das mãos'. O inconsciente do prof. o traiu aqui - no fundo de si, de todos os médicos da cidade ele acredita ser o único a saber sobre o assunto.

Já vemos nesses pequenos exemplos o que provoca a irrupção do ato falho. Por razões sociais, sabemos que não podemos dizer tudo o que temos vontade, e apesar de nosso controle para segurar e suprimir o que realmente queremos dizer, o pensamento ainda resiste com notável força no inconsciente para se fazer ouvir no ato falho. De fato, alguns atos falhos dizem respeito somente a conteúdos que são significativos para quem os comete. Estes não são assim tão facilmente explicados nem prontamente reconhecidos por quem os comete, e geralmente são dotados de alto valor afetivo.

Portanto, pode-se ter em mente que quase todo erro cometido tem um significado oculto. Digo quase todo porque às vezes erros são fruto do alto investimento psíquico em outros fatores - por exemplo, alguém extremamente preocupado com uma reunião de negócios pode vir a esquecer de pegar a filha no colégio. Esse erro não seria inconscientemente motivado, mas fruto da preocupação com algo. De qualquer forma, existem em bem menor quantidade.

Uma vez certa paciente minha, bem resistente ao tratamento, mandou-me uma mensagem desculpando-se por ter que remarcar novamente a sessão, e escreveu: "Por favor, me pergunte, estou angustiada". Num primeiro momento não entendi, mas depois vi que a intenção dela era dizer "por favor, me perdoe, estou angustiada". A interpretação desse ato falho foi bastante óbvia.

Noutro exemplo - esse foi particularmente engraçado - ouvi uma garota certa vez numa lanchonete pedir um suco de "capuaçu" à garçonete enquanto estava em companhia do que pareciam ser seus pais. Podemos bem entender que o decoro exerceu sua influência sobre este lapso, impossibilitando a menção a uma palavra tão vulgar na frente dos mais velhos.

A lista aqui poderia ser bem vasta, principalmente para quem gosta de colecionar esses fenômenos na memória, que são uma verdadeira prova da existência de atividade mental inconsciente. Vou agora rever o texto para ver se cometi algum erro... Pretendo trazer mais alguns exemplos de atos falhos depois.