"Onde 'isso' estava, Eu devo advir" - Sigmund Freud

17 de dezembro de 2012

A descrição da angústia em Maupassant - trabalho apresentado por mim na XXXII Jornada de Psicanálise do IFOL

A descrição da angústia em Maupassant

            Até hoje não vimos na literatura algo que se assemelhe ao que nos é proporcionado por Guy de Maupassant, no que diz respeito ao tema da angústia. Nas obras literárias clássicas – desde o Inferno de Dante à Metamorfose de Kafka, passando pelo Fausto de Goethe – vemos a angústia abordada de uma forma atenuada. Já nas obras de Maupassant que iremos tratar aqui, o elemento da angústia aparece-nos de uma forma pura, direta – quase poderíamos dizer que se trata de uma “descrição da angústia”.


As três obras do autor de que iremos nos valer aqui são: Carta de um Louco, O Horla (primeira versão) e O Horla (segunda versão). Estes três contos narram uma mesma situação – como pode ver qualquer um que lance rápido olhar sobre eles – que temos razões para acreditar que foi vivenciada pelo próprio autor.
Antes de começarmos, acreditamos ser pertinente mencionar alguns dados biográficos do autor, não como uma justificativa, mas para nos situarmos melhor – pois em Escritores Criativos e Devaneios Freud deixou claro como as fantasias inconscientes do autor se prestam como conteúdo para a construção de sua obra.
Maupassant nasceu em 5 de agosto de 1850. Em vida foi um amante da natureza, e em seu tempo livre gostava de passear de barco pelo rio Sena. Em junho e agosto de 1891, com 41 anos, deu início a tratamentos sucessivos em casas de saúde. No dia 2 de janeiro de 1892 tentou o suicídio. Em 7 de janeiro foi internado por amigos no manicômio de Passy, na França. Lá permaneceu até o dia da sua morte, em 6 de julho de 1893. 

Nos três contos de Maupassant, o personagem principal, que é narrador da história, relata que é tomado por uma estranha inquietação que o leva a se questionar se de fato não estaria ficando louco. Vemos na segunda versão do Horla: “25 de maio – O meu estado é realmente estranho. À medida que a tarde avança, uma inquietação incompreensível me invade [...] Caminho, então, na sala, de um lado para o outro, sob a opressão de um medo confuso e irresistível, o medo do sono e o medo da cama” (MAUPASSANT, 1997, p. 88). É uma espécie de pressentimento horrível “de um perigo iminente”, como a “apreensão de uma desgraça que está para chegar ou da morte que se aproxima” (MAUPASSANT, 1997, p. 87). Essa inquietação nervosa o mantém “acordado durante noites inteiras, uma superexcitação tal que o menor ruído me provocava sobressaltos. Meu humor tornou-se azedo. Tinha cóleras súbitas e inexplicáveis” (MAUPASSANT, 1997, p. 75).
Sua sensação de mal-estar em grande parte estava ligada ao sono, como mostra: “deito-me e espero o sono como esperaria o carrasco. Espero-o com o terror da sua vinda e o meu coração bate, e as minhas pernas tremem, e todo o meu corpo estremece no calor das cobertas” (MAUPASSANT, p. 88). Na primeira versão do Horla constata que “Logo, com efeito, recomecei a dormir, mas com um sono ainda mais terrível do que a insônia. Mal me deitava, fechava os olhos e desaparecia. Sim, caía no nada, no nada absoluto, numa morte de todo o ser da qual era bruscamente, horrivelmente, arrancado pela horrível sensação de um peso esmagador sobre meu peito e de uma boca sobre a minha, que bebia a minha vida por entre os lábios [...] esses sobressaltos, não conheço nada de mais horrível”. (MAUPASSANT, 1997, p. 75). 

A relação entre o desejo e a angústica também fica clara em Maupassant, onde, logo após momentos de satisfação por se achar em contato com a natureza, se seguem sensações angustiantes, como é expresso pelo narrador: “12 de maio – De onde vêm essas influências misteriosas que transformam em desânimo a nossa felicidade e a nossa confiança em angústia? Acordo cheio de alegria, com desejos de cantar [...] Desço até a margem do rio; e, de súbito, após um curto passeio, regresso desolado como se alguma desgraça me esperasse em casa. – Por quê?” (MAUPASSANT, 1997, p. 86). “7 de agosto – seguia pela margem. O sol cobria de claridade o rio, tornava a terra deliciosa, enchia o meu olhar de amor à vida, às andorinhas, cuja agilidade é uma alegria para os meus olhos, às ervas da margem, cujo murmúrio é uma felicidade para os meus ouvidos. Pouco a pouco, no entanto, um mal-estar inexplicável me invadia. Parecia-me que uma força, uma força oculta me entorpecia, me paralisava, me impedia de avançar, me puxava para trás. [...] Voltei, então, contra a minha vontade, certo de que ia encontrar em casa uma notícia má, uma carta ou um telegrama. Não havia nada.” (MAUPASSANT, 1997, p. 106).
Após nitidamente constatar que o mal-estar do qual era alvo tinha origem nele próprio, o narrador afirma que a motivação para seu estado estaria num pressentimento de algo que está prestes a ocorrer – como  uma notícia sobre o “agravamento de uma enfermidade” ou mesmo morte de um ente querido – não mais com sua pessoa, e sim no mundo à sua volta. Isso nos remete ao modo de pensar animista que, em geral, consiste em deslocar no mundo externo produtos da própria atividade psíquica como se estes lhe fossem inerentes, sem que se haja uma clara consciência disso.

Freud, com efeito, mostra que há um grande resquício dessa atividade mental animista primitiva presente na vida dos neuróticos, especialmente nos obsessivos. Isso seria em grande parte possibilitado pela repressão que tornaria os processos de pensamento nesses indivíduos altamente sexualizados. Os processos animistas seriam identificáveis sob as diversas formas das superstições, mitos, magias, crença nos espíritos, em suma, toda forma de atividade mental que evidenciaria um poder superestimado em relação à realidade externa – uma “onipotência dos pensamentos”. Isso porque, segundo Freud, tais crenças surgem “no terreno do ilimitado amor a si próprio”, resultado de um narcisismo primário, regulado por um outro princípio que não o de realidade.   
Esse modo animista de funcionamento é evidente ainda no texto de Maupassant quando o personagem afirma que é perseguido por um Ser, o Invisível, a quem ele o batizou de Horla, termo que, apesar de inexistente na lígua francesa, poderia ser compreendido como a junção das sílabas Hors e là, podendo então ser traduzido como o “do Além” ou o “de Lá”: “fiquei certo, certo como do dia e da noite, de que existia perto de mim um ser invisível que me perseguia, que me deixara e que agora retornava”. (MAUPASSANT, 1997, p. 78). “O Ser! Como o chamarei? O Invisível. Não, isso não basta. Batizei-o de Horla. Por quê? Não sei. E o Horla não me deixava mais” (MAUPASSANT, 1997, p. 80).
E esse Horla possui uma característica peculiar, que seria o poder de controlar a vontade dos humanos: “esta arma do novo Senhor, o dominío de uma misteriosa vontade sobre a alma humana escravizada” (MAUPASSANT, 1997, p. 113). E como pode-se ver, o Horla não se cansa de utilizar essa arma: “13 de agosto – Não tenho mais nenhuma força, nenhuma coragem, nenhum domínio sobre mim, nenhum poder para pôr em movimento a minha vontade. Não consigo mais querer; mas alguém quer por mim; e eu obedeço” (MAUPASSANT, 1997, p. 107).

A explicação psicanalítica para o mal que aflinge o personagem de Maupassant poderia ser encontrada no artigo de Freud sobre “O Estranho”. O lugar misterioso de onde brotam seus sobressaltos inexplicáveis é conhecido como o inconsciente, e o efeito inquietante relativo a eles poderia ser atribuído a um familiar desconhecido, ou seja, ao retorno de um material que foi submetido ao processo de recalque. Como não há na descrição do narrador, algo externo que provoca suas sensações angustiantes – a não ser, como já vimos, aquilo que ele próprio desloca no mundo exterior – o tipo de inquietante relatado por ele seria proveniente de complexos infantis reprimidos.
Portanto podemos compreender o porquê da dificuldade relatada pelo narrador para dormir. A medida em que se entra no estado de sono a resistência psíquica tende a diminuir, tornando possível o acesso do material reprimido à consciência. A relação entre o desejo e a angústia também fica clara, pois o desejo possibilita o reinvestimento de impulsos incestuosos inconscientes provenientes do Édipo. Para se escapar à angústia, o próprio desejo é abdicado em nome do Outro, o Horla.
No artigo do Estranho, Freud alega que o duplo teria sido “originalmente uma garantia contra o desaparecimento do Eu, um ‘enérgico desmentido ao poder da morte’ [segundo Otto Rank], e a alma imortal foi provavelmente o primeiro duplo do corpo” (FREUD, 1919, p. 351). Esse duplo – que teria sua confirmação na linguagem dos sonhos, pois esta tende a representar a castração através da duplicação de símbolos fálicos – tem seu sinal invertido após passada uma primeira fase narcisista: “de garantia de sobrevivência passa a inquietante mensageiro da morte” (FREUD, 1919, p. 351). Na seção III de Totem e tabu (1913), sobre o “Animismo, Magia e a Onipotência de Pensamentos”, vemos que através da criação dos espíritos “O homem primitivo estaria assim submetendo-se à supremacia da morte pelo mesmo gesto com que pareceria estar negando-a” (FREUD, 1913, p. 103). 

No final da segunda versão do Horla vemos o seguinte testemunho: “Só o tempo, talvez, tem poder sobre o Ser Invisível e Temível. Por que então esse corpo transparente, esse corpo imperceptível, esse corpo de Espírito, se ele também tivesse que temer os males, os ferimentos, as doenças, a destruição prematura? A destruição prematura? Todo o terror humano provém dela! Depois do homem, o Horla – após aquele que pode morrer em qualquer dia, a qualquer hora, a qualquer minuto, por qualquer acidente, chegou aquele que só deve morrer no seu dia, na sua hora, no seu minuto, porque atingiu o limite da sua existência! Não [...] ele não morreu [...] então... vai ser preciso agora que eu me mate!” (MAUPASSANT, 1997, pp. 119-120).
O Horla foi um artifício engenhosamente criado na fantasia do escritor, e mostra como se dão os esforços para se lidar com uma angústia implacável. Maupassant morreu em um hospício aos 43 anos de idade pois foi ineficaz em sua tentativa de suicídio. Mesmo um escritor talentoso como ele pode se beneficiar de uma análise, ao trazer à luz o material reprimido de uma forma menos inquietante.

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund. O Inquietante (1919). In: Obras Completas. v. 14. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 328-376.

FREUD, Sigmund. Totem e tabu, 1913. In: ______. O totem e tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 11-168. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 13).

MAUPASSANT, Guy de. Contos Fantásticos – O Horla & outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 1997.