"Onde 'isso' estava, Eu devo advir" - Sigmund Freud

22 de fevereiro de 2016

"Os Labirintos do Amor" - por Jacques-Alain Miller









       Acabei de traduzir um texto de Jacques-Alain Miller do inglês, sobre "Os Labirintos do Amor", que trata da forma como se dá a escolha do objeto de amor pelas pessoas, de acordo com a concepção psicanalítica - isto é, como sendo determinada inconscientemente, pela história particular de cada sujeito. O texto é pequeno, por isso o traduzi, e é muito bem escrito. A forma ou estética da escrita e da fala de Miller é como sempre impecável, e nesse texto ele apresenta uma síntese belíssima da obra de Freud, utilizando-se ainda de modo simples dos conceitos lacanianos para abordar o tema e ir mais a fundo na questão. No texto ele trata do amor no setting analítico, sob a forma da transferência, dos tipos de escolha objeto, da relação do amor com o desejo, com a falta, a castração, a demanda de amor e a pulsão, além de outras coisas.

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24 de junho de 2015

A Ética da Psicanálise e o Reencantamento do Mundo*

*trabalho apresentado na Jornada de Psicanálise do IFOL (Instituto Freudiano de Psicanálise de Orientação Lacaniana) no ano de 2014


1.      Weber e a ética do capitalismo
            Em seu livro, “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, o sociólogo alemão Max Weber expõe sua tese sobre a origem do espírito do capitalismo moderno. Tal “espírito”, que distinguiria o capitalismo ocidental moderno de todos os outros modelos econômicos – pois, é verdade, capitalismo existiu nas mais variadas culturas, e nos mais diversos momentos históricos – adquire sua peculiaridade pelo fato de ser revestido por um ethos, isto é, por possuir um “caráter ético de máxima orientadora da vida” (WEBER, 1904-5, p. 32). Desta maneira, a “ética social” de uma cultura capitalista – como é o caso da nossa – , espera dos indivíduos nela inseridos que tenham uma espécie de dever moral com relação ao aumento de seu capital, assim como com relação às suas atividades profissionais (não importando quais estas sejam). De fato, esta é maneira peculiar pela qual Weber vê o problema do capitalismo moderno, ao destacar o caráter ético ou aspecto moral que está na base de seu funcionamento.
            Além disso, Weber chama a atenção para uma característica importante dessa ética capitalista, a saber, que o acúmulo de capital é tomado como um fim em si mesmo. Somente aquele que administra os frutos de seu trabalho com austeridade pode ser  considerado um indivíduo íntegro e honesto, onde a vida é levada – tomaremos emprestada uma expressão de Lacan aqui – a “serviço dos bens”. Cito uma passagem de Weber: “a obtenção de mais e mais dinheiro, combinada com o estrito afastamento de todo gozo espontâneo da vida é, acima de tudo, completamente destituída de qualquer caráter eudemonista ou mesmo hedonista, pois é pensado tão puramente como uma finalidade em si, que chega a parecer algo de superior à “felicidade” ou “utilidade” do indivíduo” (WEBER, 1904-5, p. 33).

            Em suas investigações sobre os fundamentos do protestantismo ascético, Weber fez derivar a ética do capitalismo moderno do processo mais amplo de “desencantamento do mundo”, ocorrido na cultura ocidental. De acordo com este processo, houve um movimento no sentido de uma desmagificação da religião ocidental, que culminou numa certa “perda de sentido” na visão de mundo da modernidade, movimento ainda impulsionado pelos avanços da ciência moderna. Com isto, tendo sido desencantado o mundo, ou seja, despojado de sua magia ou “sentido” –aqui entendido no sentido metafísico do termo – não restou outra saída aos indivíduos modernos a não ser a “ascese intramundana”, isto é, a vida voltada para o trabalho enquanto um dever moral. A religião, assim como a vida como um todo, foi desprovida de seus elementos mágicos, sendo reduzida a seu aspecto moral.

2.      Lacan e a ética da Psicanálise

            No Seminário 7, sobre “A Ética da Psicanálise” (1959-1960), Lacan nos dá uma definição de ética: “a ética”, diz ele, “consiste essencialmente [...] num juízo sobre nossa ação”. De modo que, “se há uma ética da psicanálise”, é porque “a análise fornece algo que se coloca como medida de nossa ação” (LACAN, 1959-1960, p. 364). Esse “algo” que se coloca como medida da ação – isto é, que orienta e atribui sentido à conduta humana –  para a psicanálise, este algo é o “desejo”. De fato, Lacan propõe que: (abro aspas) “a única coisa da qual se possa ser culpado, pelo menos na perspectiva analítica, é de ter cedido de seu desejo” (LACAN, 1959-1960, p. 373).

            Por conseguinte, fica patente o contraste existente entre essa ética da psicanálise e aquela do capitalismo moderno descrita por Max Weber. Com efeito, de acordo com Lacan: “a esse pólo do desejo se opõe a ética tradicional [...] falei-lhes do serviço dos bens que é a posição da ética tradicional. Depreciação de desejo, modéstia, temperança” (LACAN, 1959-1960, p. 368). (fecho aspas). Desse modo, a ética da psicanálise e a do capitalista são diametralmente opostas. 

3.      O estatuto do desejo

            Tendo isso em vista, se a ética da psicanálise é a ética do desejo, convém tecermos algumas considerações sobre a natureza do desejo. Ora, em que consiste o desejo?

            O desejo se encontra numa relação dialética fundamental com a falta, onde não há possibilidade de desejar em presença da Coisa, somente em sua ausência, ou seja, enquanto esta se acha radicalmente perdida (CORRÊA, 2002, p.?). Poderíamos mesmo afirmar que o que sustenta a movência desejante é antes um vazio, pois não há objeto capaz de saturar o desejo. A falta é a falta de algo, de algum objeto perdido que, se reencontrado, estaria apto a proporcionar a completude para o sujeito desejante. Já a Coisa é essencialmente perdida. Por conta disso, o objetivo do desejo é simplesmente continuar desejando, pois não há objeto capaz de satisfazê-lo (FINK, 1998, p. 116). A cada novo objeto conquistado o sujeito deve dizer “não é isso”, e aquele que deseja será sempre confrontado com a falta.
4.      O “Diabo” – o desejo e o mal
Tendo estabelecido as coisas até este ponto, acreditamos ser conveniente – já que estamos falando, entre outras coisas, de desejo e de ética religiosa – evocarmos aqui um personagem importante na história da cultura ocidental – me refiro ao “diabo”. A literatura psicanalítica demonstrou claramente que o “diaboé uma representação do desejo humano. No diabo de Cazotte e no Fausto de Goethe, podemos constatar essa afirmação a partir de três pontos: (1) o diabo, em sua primeira aparição, em sua forma real, verdadeira e mostruosa, provoca pavor ou terror no sujeito que com ele se depara (e nós sabemos, pelo estudo dos sonhos, o quanto o desejo tem que ser disfarçado para não despertar o sujeito com angústia); (2) o diabo é um ser proteiforme, que pode se transformar naquilo que o sujeito mais deseja (o que trai sua natureza metonímica); e (3) o diabo cobra um preço muito alto por seus serviços, tendo aquele que realizou o pacto, geralmente que pagar com a própria vida. Assim o fez Mefistófeles, ao final do Fausto, ao dizer: “este não, este é meu”, indicando assim que o Fausto não poderia ser salvo.
            Logo, se o diabo é o desejo, sentimo-nos obrigados a fazer a seguinte pergunta, com o intuito de nos furtarmos às evidências: por que o desejo é associado ao mal? A última característica do diabo – ou seja, do desejo – que nós citamos, a saber, que quem a ele se submete deve pagar com a própria vida, nos esclarece muito sobre essa sua vinculação com o mal. Isto porque não há maneira de aceder ao desejo sem esbarrar na castração, na falta do Outro, e às vezes até mesmo na falta da falta. A esse respeito, Lacan nos diz que (abro aspas): “Sabe-se o que custa avançar numa certa direção, e meu Deus, se não se vai, sabe-se por quê. Pode-se até mesmo pressentir que se não se está totalmente esclarecido sobre suas contas com o desejo, é porque não se pôde fazer melhor, pois, não é uma via em que se possa avançar sem nada pagar” (LACAN, 1959-1960, p. 378, grifos nossos).
            Portanto, uma leitura psicanalítica do problema da moral capitalista, nos permite escapar do engodo maniqueísta a que uma análise sociológica da questão pode nos levar. Vemos com isso, que se há uma demanda cada vez maior por fármacos e objetos de consumo, é porque – nos dizeres de Lacan: “é mais cômodo sujeitar-se ao interdito do que incorrer na castração” (LACAN, 1959-1960, p. 359). 
5.      Conclusão – A Psicanálise e o Reencantamento do Mundo
            Enfim, para concluirmos, convém retomarmos o percurso traçado até aqui. Vimos que a ética capitalista emergiu em decorrência do processo de desencantamento do mundo ocidental, no qual o racionalismo científico da modernidade tomou a frente dos grandes sistemas metafísicos, retirando assim a magia do mundo, e com ela grande parte de seu sentido. Vimos também que a ética da psicanálise é uma ética do desejo, sumamente expressa no mandamento Não cedeis de teu desejo. Em seguida, em nossa investigação do desejo, verificamos que este possui um caráter volátil ou etéreo, pois a substância que o envolve tem a consistência de um vazio. Ao final, a partir da análise de uma figura ilustre da religião cristã, o diabo, nos questionamos sobre a vinculação do desejo ao mal, assim destacando sua relação fundamental com a morte.
Portanto, se o discurso da ciência retirou algo do Sentido do mundo – Sentido aqui com “S” maiúsculo – , então cabe a nós fazer a seguinte pergunta: pode a psicanálise se constituir enquanto uma via de reencantamento do mundo? De fato, no texto “Rejeições religiosas do mundo e suas direções”, há uma passagem em que Max Weber aponta para uma possibilidade de reencantamento do mundo que, ao contrário do que se poderia esperar, não estaria dentro da própria esfera religiosa, mas sim no erotismo (PIERUCCI, 2013, p. 220 e seg.). Tal afirmação, vinda de um sociólogo da religião, nos causa surpresa.
            Tendo em vista essa possibilidade de reencantamento do mundo, devemos dizer de antemão que não acreditamos que a psicanálise, com sua ética do desejo, possa restituir à humanidade um sentido próximo àquele que foi perdido. Mas temos a convicção de que ela pode devolver a magia de viver a alguns poucos indivíduos. Uma visão de mundo que confronta aqueles que dela partilham com a falta, não pode admitir pretensões universalizantes. Com efeito, a experiência analítica comporta uma dimensão trágica, e a respeito disso Lacan coloca a seguinte questão: (abro aspas) “o término da análise, o verdadeiro, quero dizer aquele que prepara a tornar analista, não deve ela em seu termo confrontar aquele que a ela se submeteu à realidade da condição humana? [...] a desolação, onde o homem, nessa relação consigo mesmo que é sua própria morte [...] não deve esperar a ajuda de ninguém” (LACAN, 1959-1960, p. 356).
Enfim, nossa opinião é a de que a psicanálise é incapaz de fornecer um télos pleno de sentido. A análise apenas nos convida a experenciar o sem-sentido da vida. Ao confrontar o sujeito com a falta, ela serve como ponte de passagem ao investimento dos objetos do mundo, e como meio de resgate do encanto de viver.